sexta-feira, agosto 25, 2006

A reportagem e o compositor decadente

O jovem Marcos Penido estava no terceiro ano de jornalismo e na faculdade havia feito só pequenas reportagens insignificantes e nos demais trabalhos fazia o que é conhecido no jargão jornalístico como "gilette-press". Queria fazer uma boa reportagem para impressionar seu professor.

Depois de pensar em vários temas, veio-lhe a cabeça fazer uma matéria inédita sobre música. Mas como não conhecia ninguém do meio seria difícil. Então começou a pesquisar o assunto. Assistindo a um programa na televisão teve a idéia de entrevistar um compositor de música brega já no ostracismo. Como os bons profissionais, no outro dia ligou para a emissora e conseguiu o telefone. Sentiu-se vitorioso. Uma etapa estava vencida. Ligou. Do outro lado da linha a esposa do compositor. Explicou o motivo da entrevista. A mulher foi educada e se prontificou de conversar com o marido e pediu-lhe que ligasse à noite para resposta. Esperou ansioso o dia todo e no horário marcado ligou. O compositor já estava esperando e atendeu com sua voz macia. Marcos elogiou seu trabalho, contou que sua mãe gostava de sua voz e, indiscreto perguntou porque não se apresentava mais nos programas populares ao que ele respondeu com modéstia, que estava envolvido em grandes projetos. Marcou a entrevista para a semana seguinte. Um dia antes, Marcos ligou combinando a entrevista para o dia seguinte.

Era véspera de Páscoa. Pelo telefone o compositor cobrou "não esqueça do meu ovo de Páscoa". Para não fazer feio, Marcos gastou suas últimas economias num ovo de um quilo. Enfim o dia chegou. Saiu de casa cedo e dirigiu-se a casa do compositor. Foi confiante: vai ser uma entrevista e tanto. Achou com facilidade o endereço. Tocou a companhia e veio atender-lhe um senhor gordo, o próprio compositor. Cumprimentou-o com um pouco de frieza. Sentindo-se um pouco atrapalhado, afinal não tinha experiência. O compositor levou-o a uma pequena sala onde tinha na parede havia um enorme quadro com a foto de Elvis Presley, um violão em cima do sofá já surrado pelo tempo e fotos dele no início da carreira. Ficou ali sozinho por alguns minutos até que o agora gordo e velho compositor voltou com uma enorme garrafa de café e disse: "fique à vontade, aqui é casa de gente simples". Fechou a porta e pegou o violão. Depois das apresentações, disse ao jovem Marcos, futuro foca: "estou vendendo por uma bagatela, aproveita é de um artista". Agradeceu e disse que não sabia tocar nada, estava ainda aprendendo a fazer reportagens. Iniciou a entrevista. Gravou durante três horas e as perguntas começaram a ficar repetitivas. Conseguiu algumas revelações sobre os bastidores da produção de alguns discos. Contou orgulhoso que na sua época não existia a mixagem. A orquestra tocava e o cantor tinha que soltar a voz. Sucesso? Já havia esquecido porque fazia mais de décadas que não emplacava mais nada. Lamentava o descaso da mídia. Para eles "só interessam rostos bonitos e produções baratas, não investem nos talentos", disse o compositor.

Nosso futuro foca foi convidado para almoçar. Durante o almoço conversou futilidades e logo saiu. Mais tarde ligou pedindo número do telefone de alguns contemporâneos, decadentes como ele, para uma matéria mais completa. Dia seguinte, o compositor ligou-lhe pela manhã, passando os números e disse estar preocupado. Não entrou em detalhes e desligou. Passados uns vinte minutos, ele liga novamente e conta uma história estranha. Tinha sido assaltado ao sair do banco no centro de São Paulo, onde sacara o dinheiro recebido de seus direitos autorais. Estava desesperado porque tinha muitas contas a pagar e estava com vários cheques devolvidos sem fundos. Perguntou se eu não conhecia alguém que podia lhe emprestar uma pequena quantia e não se importava de pagar juros de até 5%. Disse que não conhecia. Então, com maior cara-de-pau pediu o valor ao futuro foca. Este respondeu que tinha pequena poupança para as emergências, ao que o velho compositor assegurou que a importância era só por alguns dias. Então ficou acertado o empréstimo. Nosso futuro foca percebeu alegria na voz do decadente letrista. Pediu-lhe então o número de sua conta bancária para o depósito. Este pediu que depositasse na conta de uma amiga sua, pois com a conta estourada, todo dinheiro que entrasse seria absorvido para pagamento da dívida. Ao que Marcos concordou. Ao desligar começou a matutar: cheque devolvido, assalto, conta de outra pessoa. Está muito confuso e esta história está mal contada. Decidiu: não vou emprestar coisa nenhuma. Passou o dia pensando como poderia um compositor que se dizia amigo de grandes nomes de nossa música, com várias letras gravadas querer emprestado o suado dinheiro de um aspirante de jornalista. Isto estava cheirando a golpe. Começou a pensar numa estratégia para sair desta enrascada. Chegou a uma conclusão: não o atenderia mais, porque não tinha coragem de negar-lhe o empréstimo já prometido. Passou a não mais atender telefonemas e pediu a mãe para dizer ao gordo-velho-espertalhão compositor que não estava em casa.

Mas ele não perdeu a esperança, ligando diversas vezes. Chegou a ponto de mandar sua filha adotiva ligar passando-se por uma colega de faculdade. A mãe sempre pronta a ajudar o filho, de cara percebeu a "casca de banana" e disse enfática: "ele está na biblioteca fazendo uma pesquisa". Depois deste embaraço, Marcos desistiu da reportagem inédita e continuou fazendo seus artigos com sempre fez.

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